(Um registro da casa-viva do pintor Murilo Santos de Almeida, “onde morreram todos os doentes”, em Patos, Paraíba)
O tracejar do pincel faz o mundo se abrir pelas frestas do tempo é quando o vento entra para forçar a porta semi-cerrada atrás da cena uma rua singular como testemunha de algo sendo parido na ansiedade do próprio parto soluços em guaches e pincéis são ouvidos toda noite eventos que fluem do imaginário feito arte moderna em plena caverna do ser humano mas o escuro não é pano de fundo para o medo as paredes grafadas são pedras filosofais livros apócrifos que nos dão a ideia do que podemos ser a liberdade é o tema de todos os quadros o sangue coagulado a tinta essencialíssima e o quadrilátero a abadia pois o sacrossanto é o discurso que se sustenta pelo cavalete da ciência da técnica da persistência figuras que perguntam mais que respondem e que não fazem outra coisa senão sacrifícios feito périplo cruz calvário não diria inocência ali a loucura de Roterdã sempre foi ponto de arranque e isso justifica todas as idades a própria extrema-unção o natimorto ou aquele que esmola os seus anos atestamos a cada pincelada um vida duas vidas e gerações e reencarnações e transcendentalismos e metabolismos compostos metafísicos é a linguagem encerrando capítulos e reabrindo outros além e dando coragem para o enfrentamento e nada é real e tudo é real o espelho quebrado de forma aparente a deformação do esquadro o tamborete que vem com uma explicação e que também pode ser Atlas carregando o globo celestial a menina que se maquia para a festa e que é uma virgem pelo globo ocular do pintor a mesma que todos os dias morre em seus braços e que se nutri do leite do peito do pai do filho e do espirito santo na mesa de madeiro artesanal ou no armário démodé um sem-número de pertences de outras épocas um escapulário ainda por terminar uma revista que fala em Picasso um livro de Graciliano Ramos Uma Bravo um tronco de árvore no degrau da escada que não leva a lugar nenhum uma pintura de uma mulher que eu gosto com a sua nudez acentuada e que após ser maculada fora dependurada um pouco acima de um grito rabiscado a cara de um boi uma moldura sem pano Camille Claudel um recorte de jornal um Cotidiano amassado também anteparo de ontem com as suas letras caindo sobre o sofá de muitas noites de amor sem esquecer a aquarela de mil vertigens que borra o esbranquiçado na mistura lúdica sensual política crítica universo conteúdo e continente a própria esquina a canalização dos valores a ética a estética a moral o imoral um sapo com semblante de Renoir que reflexivo vigia o artista e um bilhete um valete um disco de vinil que teima em descortinar todo esse passado citado um auto-retrato na insistência de querer se encontrar o flagelo não a comiseração a amálgama dos matizes de Íris que passa a ser mortal e sofre porque também existe uma fera dentro dela e tudo é recorrente capela de frágeis imagens onde só o amor redime e o pecado é renegado e as lembranças viram quadros suave uma música que enfim reparte os mundos e que ecoa naquele porão me chega aos ouvidos uma voz que lembra Ney Matogrosso a conversa desfiada quase novelo a curtição a voz de Deus a voz da mãe a voz da vida a voz do diabo a face do pai o irmão a irmã o filho o filho do filho a consciência e a “alegoria” ora carne feito modelagem abençoada por Rodin um café meio amargo a fumaça do cigarro por sobre as cabeças decepadas a tosse e o pigarro constantes trivialidades humanidades uma noite de segunda-feira morna 22 horas e tudo se faz começo.
por Misael Nóbrega de Sousa